quarta-feira, agosto 24, 2005

SEGREDOS DO SUICÍDIO DE GUY DEBORD

Iº Encontro
14 de junho de 2004, segunda-feira.

Final de tarde, como de costume preparei o chimarrão e sentei-me no degrau da porta de casa curtindo a tranqüilidade morna de um roçar de vento por entre as folhas da palmeira e das azaléias ajardinadas. Ao primeiro latido da Bali, uma cadela acinzentada e de muitas raças que me acompanha nestas horas, permaneci sem vistas que vissem, mas, coisa de alguns segundos, já me deparei com um vulto próximo ao portão por detrás das flores lilases. Num passo, entre a sorvedura e a cálida sensação de um gole, me aproximei, porém uma mão estendida por entre a grade estacou meu ímpeto de ir em frente. Sou Debord. Quem? Debord, Guy Debord. Muito prazer, eu sou John Lenon. E fiquei olhando para aquele senhor, que exibia um certo sorriso contido por debaixo de um espesso bigode esbranquiçado e não recolhia aquela mão ossuda, agora apoiada pelo punho sobre uma das treliças da grade. A combinação entre miopia e penumbra me obrigou a retroceder e acender todas as luzes para então me aproximar e, diante da insistência, apertar a mão daquele homem. Como estás? Algo naquele tom de voz, naquele sotaque, naquele jeito compassado de pronunciar as palavras, por um momento, lembrou-me minha adolescência. E seu pai ainda vive? Você era muito jovem quando esteve com ele em Paris. Sim, agora me lembro, mas as suas cinzas não foram jogadas no Sena no final de 1994? Essa é uma longa história, não quero entrar em detalhes, por enquanto só quero que saibas que sou eu mesmo este velho que aqui está em tua frente. O que ocorreu, na verdade, é um grande segredo entre mim e a minha querida Alice. As situações criadas a partir de um suicídio vão além do espetáculo com sua linguagem constituída por signos da produção reinante, que são ao mesmo tempo a finalidade última desta produção. Aprendi com o espetáculo que a verdadeira liberdade está na contramão dos preceitos hegemônicos para a produção de promessas libertárias.

Já na sala e sem os sapatos, caminhou até a janela lateral que não dá para lugar algum ou, melhor, que dá para uma parede chapiscada e escura, levou a mão direita ao bolso esquerdo do paletó surrado e puxou um Churchill baiano. Entre baforadas e labaredas: bom esse Dona Flor! A memória é esta parede, onde crio agora uma situação do passado em imagens puras; cenas de um suicídio que não permitiu à doença o privilégio de sugar-me a vida. Sempre encarei a doença e a morte como espécies de retóricas e sobrevivi da minha sabedoria; não seria aos sessenta e tantos anos que elas ou o trabalho me arrebatariam da deriva para o cumprimento de tarefas que não creio. Isso também faz parte do segredo que me possibilitou a experiência de novos espaços e de novos tempos nos últimos dez anos. Podes me conceber como o espírito de Guy Debord, se quiseres, porque eu não alimento o espetáculo, apesar de permanecer por entre seus bastidores. Entre Bellevue-La-Montagne e Champot, insone e embriagado por pensamentos eu acordei Alice naquela manhã de dezembro com um grito de desabafo: basta! Vou dar um fim a esta merda de vida. Vou mergulhar na morte para intervir, de um lugar desejado, no espetáculo da produção que as imagens representam e produzem; para intervir na debilidade das reações que acompanha a decadência deste mundo. Quem atenta na pobreza da sua vida compreende bem a pobreza dos seus discursos. Basta ver os adornos e as ocupações, as mercadorias e cerimônias; e isto está à vista por todo o lado. Basta ouvir as vozes imbecis que vos dizem aquilo em que vos tornastes na alienação, e que vo-lo dizem com desprezo, a cada hora que passa. Os espectadores não encontram o que desejam; eles desejam o que encontram. Essa a voz que instaurou a situação do meu suicídio e que prosseguiu até o convencimento de Alice de que o comum que eu buscava estava na deriva; além do urbanismo unitário, das experiências que na cidade alguém poderia criar situações novas, por exemplo, ligando partes da cidade, bairros que eram espacialmente separados como um primeiro significado de deriva; além do urbanismo ideológico fundador de uma espécie glacial humana. Estava na deriva como coerência de uma construção não fabricada por imagens tiranas absorvidas pela estupidez dos locatários de território.

Voltou-se para mim com um olhar profundamente sábio e dócil: a deriva que experimento hoje, meu caro, é infinitamente recombinatória; reespiritualizante pela edição de um conhecimento que se reconhece, situação criada, como um nó na rede da linguagem a desestabilizar radicalmente os poderes hegemônicos. Estático e completamente desnorteado, em pé, segurando com as duas mãos a cuia já fria eu tentava entender alguma coisa do que ocorria; em que situação eu me encontrava, em que espaço, em que tempo se a certeza de que houvera um suicídio se confirmava nas palavras do próprio suicida, que, no entanto, fumava seu charuto bem ali em minha frente. Em meio ao extremo esforço perceptivo enxuguei a fronte com as costas do braço direito e desabei sobre a poltrona que me aguardava feito plasma de memórias.

Lembro-me que era início de julho de 1965, as férias mal haviam começado, meu pai chegou em casa mais tarde do que de costume, e com a respiração muito alterada foi logo me orientando no preparo de duas grandes malas, que tínhamos de sair rapidamente da cidade porque os filhos da puta estavam atrás dele. Ligaria durante a viagem para a minha mãe, que viajara dois dias antes para a casa dos meus avós no interior de Santa Catarina, e chega de questionamentos se não essa corja acaba nos alcançando. Em meia hora, após ter raspado rapidamente o bigode, enfiado alguns livros entre as roupas amarrotadas em uma das malas e enterrado um gorro da minha mãe na cabeça, estava meu pai irreconhecível num guichê da rodoviária.

Deite o banco e durma que amanhã eu te conto, não posso falar agora, alguém pode ouvir. De tanto que os meus amigos apareciam e perguntavam por mim, e que a Maira chorava e não entendia como as pessoas somem assim sem dizer tchau nem dar um beijo, no rosto que fosse, o ônibus entrara em um imenso pantanal e a água era transparente e respirável e a minha mãe dizia que o oceano era um lugar onde a gente se escondia até que passasse um trem cheio de meninas alegres trazendo uma outra cena a reboque cheia de flores e todos os meus cadernos pendurados num varal ao sol, acordei, e meu pai me olhava.

Foz do Iguaçu era assim mesmo, Curitiba era a capital, é claro que era maior e tinha mais gente. Esses filhos da puta tinham assaltado o poder e não toleravam nem a mãe deles; queriam acabar com os comunistas. Na verdade eu sou só um simpatizante, não sou filiado, mas esses merdas não querem nem saber; ontem depois que saí do correio, ao invés de ir para casa como faço todos os dias, a convite do Ademir fui a uma reunião do partido no escritório do Espanhol, estávamos na sobreloja quando tocou o sininho engenhosamente instalado num canto da sala por detrás de um móvel de madeira maciça, acionado por meio de um fio de nylon pela mocinha que atende ao caixa da loja. Esse era o código de invasão. Bateu o desespero. Estávamos lendo um texto, de um tal Guy Debord, trazido de Paris pelo Espanhol e que na verdade nem é comunista, mas vá dizer isso a eles; num gesto automático o Amaral rasgou aquelas cinco ou seis páginas e enfiou vários pedaços na boca mastigando-os freneticamente, gesto contínuo, cada um dos participantes fez o mesmo e corremos para uma porta que dava para uma escada aos fundos do prédio. Já no pátio me esgueirei por entre alguns entulhos, pulei dois ou três muros e saí lá na rua Saldanha Marinho. Liguei para a loja, de um orelhão da Praça Osório, e um dos vendedores me contou que prenderam o Espanhol, o Ademir e o Mauro, corri para casa e aqui estamos nós. Tenho alguns endereços de pessoas que talvez nos ajudem em Buenos Aires e em Paris, e algumas economias no banco; acho que tudo dará certo e logo você volta para cuidar da sua mãe até que esses merdas tenham se fodido.

Ainda não me acostumei com o chimarrão, você não teria um vinho tinto seco? Ah, sim, o vinho, um vinho tinto seco, sim, é claro... Trouxe hoje, é caseiro, puríssimo, pego ali perto de Santa Felicidade, feito pelo seu Alcides. Uhm...! Que aroma agradável! E que sabor! Terei prazer em conhecer o seu Alcides. Eis-me aqui frente ao filho do vento..., Zeferino, o suave vento como ele mesmo dizia. Teu pai sempre me foi caro desde a manhã no Les Deux Magots quando Michele chegou com aquele senhor completamente desorientado frente às idéias e ao idioma de um novo tempo para ele, e com um menino franzino e assustado, devias ter uns 14 ou 15 anos. Quinze. Mas nada disso interessa, meu caro, o passado se situa no gesto presente e a memória é o eterno poder emergente que a simulação desconhece ou confunde com as imagens de uma hegemonia prostituída. Ator e vivente são sujeitos do mesmo espetáculo que leva ao suicídio ou à representação que conduz ao culto de imagens em produções culturais apenas previsíveis. A linguagem dos signos é o palco onde se instalam as gangorras para o direcionamento dos holofotes; onde o espectador encontra o que nunca buscou e passa a acreditar que a busca é apenas um privilégio da presença; onde o querer transcorre num lugar desprovido de coerências que façam valer a vida como condição da linguagem. No meu embarque para Santiago do Chile, após assistir como extrema experiência, fantasiado de palhaço, a todo o espetáculo que gerou o meu suicídio, senti como nunca o sabor da liberdade; agora eu era Augusto Merimée, um ex-produtor cultural que buscava se distanciar do Velho Mundo para melhor enxergar a minha própria trajetória do ponto de vista dos que me desprezavam, dos que me acusavam de insolente, de vagabundo como fez tantas vezes Henri Lefebvre, um falso amigo que depois de tanta convivência comigo, com Michele Bernstein, minha primeira companheira, e com o pessoal todo que pensava as questões situacionistas, traiu a todos ao tomar como seus os nossos argumentos, as nossas teorias, inclusive, ao afirmar que nós abandonamos essas questões, como fez abertamente em uma entrevista concedida a Kristen Ross em 1983, que hoje está na Rede Mundial. O que ocorreu, e ocorre, é que somos diferentes (isso eu vim a entender melhor em Santiago), ele não podia ter-nos acusado desse abandono porque, de minha parte, o movimento é constante e as situações ou ações são coordenadas hoje a partir das anteriores que sucedem de anteriores ainda. Não há abandono; o que há, no caso das teorias situacionistas, para mim, é um avanço rumo à consolidação empírica de uma deriva que após o espetáculo do suicídio se posicionou na contingência como situação natural ofertada na linguagem para compor o momento de que tanto ele próprio, Lefebvre, nos falou. Apesar dos meus argumentos de então, quando amanhecíamos dialogando naquele quarto escuro da rua Saint Martin no início da década de sessenta, se oporem aos dele, que insistia em vincular o amor às nossas teorias, hoje, de certa forma, compreendo todo o seu veneno destilado contra mim e contra os situacionistas em geral. Logo que cheguei a Santiago, tive o privilégio de conhecer o Dr. Humberto Maturana, um neurocientista, expoente do pensamento atual que o preconceito dos velhos moldes acadêmicos ainda teima em ignorar por estes lados do mundo. Conheci e debati a sua Teoria Biológica do Conhecimento, a Matriz Biológica da Existência Humana, como dizia ele: compreendida através de diferentes espaços reflexivos e de ação, nos quais vivemos e convivemos num processo de transformação na convivência em torno da arte e da ciência do pensar ontológico constitutivo. Discutimos a linguagem, do ponto de vista da sua teoria, e percebemos as ações espetaculares, que “Debord” havia previsto, coordenadas em seqüência histórica desde a ruptura sujeito/objeto. Em um de nossos últimos encontros, em seu laboratório na Faculdade de Ciências da Universidade do Chile, falou-me da percepção e do campo da compreensão ontológica do fenômeno do conhecer, como um fenômeno biológico que ele denomina biologia do conhecer e biologia do amar. A partir daí, dizia ele, o não poder fazer referência a uma realidade independente do operar do observador não constitui uma limitação para compreender o âmbito relacional e cognitivo humano. E mostra, que, ao contrário, ao reconhecer essa condição constitutiva do ser vivo em geral, e do ser humano em particular, é possível entender o fenômeno do conhecer como a contínua criação de domínios de existência.

Está muito bom o vinho, mas um copo de água a estas alturas será bem vindo; da torneira, por favor, para criar anticorpos. Três anos em Santiago, e uma eternidade frente aos pensamentos daquele homem que me impressionou profundamente pela lúcida simplicidade com que abordava a complexidade das relações entre sistemas, por exemplo, e por sua quase lúdica presença de velho menino. Não sei se, perplexo, é bem a palavra, mas sinto dificuldade... Ora, meu caro, eu compreendo, e digo mais, deves estar questionando por que te procurei, como cheguei aqui, o que tenho feito, por que no Brasil, por que em Curitiba... Tenho muito para falar e mal nos conhecemos, mas, para amenizar a tua perplexidade vou contar como cheguei a tua casa. Contingências, meu caro; moro em um quarto de pensão, próxima ao Tarumã, e tenho alguns amigos no Bacacheri que visito regularmente há dois anos. Tomo sempre o ônibus interbairros II, que passa próximo à pensão, e desembarco no Terminal do Cabral para tomar um alimentador até o Bacacheri. Um dia desses, ao chegar ao terminal, percebi um menino acabrunhado próximo ao ponto que eu me dirigia. Algum problema? Roubaram o meu tênis. Não sei, ou, melhor, não sabia que sentimento, que laços me moviam, mas fiquei ali conversando com aquele menino descalço, ferido em sua dignidade, até que o seu irmão, informado da situação por telefone, chegasse com outro calçado. Mas isso aconteceu com... O teu filho. Pois é, daí, podes imaginar como cheguei aqui, aliás, esta não é a primeira vez. Não encontrastes um texto anônimo em tua caixa postal? Escrevi aquilo apenas como um exercício biocaligráfico, no ônibus quando vinha para cá, nada de importante. Biocaligrafia é um conceito que tenho pensado para sintetizar a utilização das mãos artisticamente na contramão do espetáculo que hoje opera hegemonicamente no campo digital; influências do senhor Maturana. Mas isso é assunto para um próximo encontro, como tantos outros que fervilham na vivência e convivência deste jovem de 74 anos. Curitiba, por exemplo, é um assunto muito promissor; desde a minha chegada, após um período de deriva pelo país, em março de 2000, até hoje tenho vivido os espaços curitibanos que vêm me proporcionando elementos de profundas reflexões. Não tem importância; na próxima vez eu me demoro mais e provo dos teus dotes culinários. Uma excelente idéia, se assado, cozido pesa no estômago, é indigesto. Fique a vontade, ninguém acreditará mesmo; sou Augusto e apenas conheci Debord. Ah, eu acho que não te respondi, sobrevivo fazendo horóscopo para animais, para cavalos principalmente; uma herança de Michele.

Roberto Bittencourt

terça-feira, agosto 23, 2005

ENTEerro


Bendito erro que assegurou o
momento de percebê-lo quando
a multidão enfurecida
ainda babava sem pedras.

Sagrado grão de coisas profundas que
nasce no reflexo de um desconforto,
de um certeiro ato desacatado e morto.

Gene de desejo intenso
precipitado sob a aparência
de uma árvore atorada
antes que se dê esta imagem.

Roberto Bittencourt

Solidão


Dona dos lugares que tua presença
perfumou e hoje amanhecem comigo
- profundamente criança - coração
conduzido à marquise de teu abrigo.

Esplêndido castelo sobre a colina
que visitei num setembro
e que na química da minha adrenalina
vive a amputar-me um membro.

Roberto Bittencout

Vestígio


A Yurek Shabelewski (em memória)

A terra cedia lentamente à força de um pinhão que brotava solitário ao rés do campo e inventava no espaço uma tímida imagem por entre o capim. Na precisão do meio, mais uma semente que rebentava ainda aos sons de serras e de machados que aderiram ao pigmento gris da memória. Um broto de misericórdia ao apelo desértico que transita rouco na laringe do vento sul. Um destino traçado sem testemunho que já ensaia a sombra de um futuro de toras e de tábuas e de palitos e de um palco para ser bendito.

É um pinheiro que se expande a seu tempo, e, que, ainda que você o visse desde as sutis rachaduras que causou na terra, não reconheceria aqui na dança deste texto a textura das grimpas ensolaradas esticando nas fibras de cada manhã. Dos dias que se sucedem, no possível domínio da palavra, se faz imagem da araucária que Yurek percebeu em seu olhar de revoada; ergue-se o tronco de uma imaginação que se alimenta da seiva e da luz ceifadas ao ar agonizante.

Antes a dimensão da sombra que percorreu léguas no ir e vir das tardes sem compromisso, para agora se enroscar na linguagem e converter uma história em invento; e, para nesse caos natural de bio-alinhos resistir e curvar-se aos ventos, conduzir ao chão as explosões de tempestades e estampar no entardecer a silhueta que você vê agora por sob as pálpebras. Antes a desenvoltura voltada à vida, ao alvoroço de um ser único sem a individualidade do inteiro, do oleiro espatifando um tijolo de tempo na coisa moldada em mito.

A neblina ensina um olhar diferente e, nesse momento, o pinheiro não é pinheiro, não é véu, não é fumaça. Nada o indica e, ainda assim, é dito aqui que ele nasceu lá e que viveu até alinhar-se ao topo imaginário de uma agulha plantada ao acento. Extremo incômodo. Não há perdão ao atrevimento de se postar entre o cômodo e o indispensável. O lucro líquido, até da palavra sólido, bebe-se na fonte natural da mata, sem o custo de uma condição ecológica que entrave o negócio.

Ainda assim, houve o tempo de ser pinheiro; araucária ereta na fina visão de uma invernada, de ser jovem movendo-se no frio rubro do inverno sem a tecnologia mínima de um chinelo. Tempo de viver a dimensão do oxigênio que a vida incorpora desde as suas moléculas para, um dia, rosnar nos dentes de uma serra e violar as leis que regem qualquer sobrevivência. É o romântico domínio sobre a natureza, neste exemplo construído sem qualquer instância que não a do condomínio imortal do amor.

Que surjam madalenas, arianos ou negros na fábrica de um destino que não dependa somente da aparente evolução do beijo, da orientadora estrutura de uma lágrima. Soem os sinos, eleja-se o homem para galgar o posto do espírito que amou além de qualquer bem e que ainda vive desde as sobras dos condomínios de luxo. Assevere-se o domínio de um único olhar e o vacilo de um sim estropiado por entre as farpas da solidão escancarada à luz de uma palavra que diga não.

Daí o ensino, respeito desencilhado a galopar por entre olhares sem firmamentos que possam individualizar a história de um único peito. Política sem ética, tática de um lúdico sem nó e sem a esperança de que uma única pinha debulhe-se por sob a impermeável palidez das calçadas. É a eterna primeira pedra esfacelada contra a superfície polida do túmulo que guarda a miséria da matéria corrompida, num ato de coragem que se desprende do arrogo em forma de penitência.

De altivo quedou-se ao estalido de lascas esbranquiçadas pela violência exposta ao sol de um dezembro sem nuvens. Em seu lugar cresce a transgenia arrogante de um sistema adulterado em função de um poder conquistado às custas da indigência, da marginalidade social instituída para sustentar o discurso que a esse poder se preste.

Isso não é tudo. Não é nada. Mas, a você, leitor, teço um vestígio da fauna que sobreviveu à nossa caça predatória.

Roberto Bittencourt

sexta-feira, agosto 19, 2005

Luz do olhar


Você bem que podia me ensinar como se transforma um olhar candeeiro, tocha em chama, em gelo seco. Ensinar-me a química desse olhar nebuloso que se aventura sem face para além de uma fronteira razoável. Apontar-me, ao menos, o rumo dessa experiência singular que naturalmente lhe cabe sem qualquer interferência.

Não que com isso alguma coisa vá mudar na Bolsa de Londres, na Congregação para a Doutrina da Fé, no saque à Biodiversidade Amazônica, nos discursos na Casa da Mãe Joana. Mas se você me desse uma dica, uma pista qualquer de como se olha assim sem brilho, talvez eu pudesse percorrer sem susto um corredor que leve a algum poder que a palavra poder desperte. Quem sabe se eu não percebia um equívoco feito palanque-mestre, um erro sintático, morfológico, um erro de cálculo em função de uma ordem expressa.

Assim, mesmo que anoiteça de seu ponto de vista, permanece clara a minha disposição em contribuir para que nada aconteça sem o lume de sua presença, sem o necessário alarido sobre qualquer sentença. Você me confiava um segredo e eu permanecia ouvinte até compreender uma coerência que me faça sentido, que me conduza ao Planalto Catarinense. É isso o que lampeja de um olhar que percebo num everest a desafiar minhas forças, meus propósitos.

Se eu lhe dissesse para entender como apelo esta minha fala, por certo, a sua aventura se daria em lamentos, em espaços de um possível atrevimento que jamais me moveria. Por isso, entenda na perspectiva de sua chegada a um jardim para colher flores, na expectativa de um nexo que lhe insira plenamente ao caos. Não tenha olhos para me ouvir, para atentar ao que fuja de uma simples sugestão para que você me ensine o caminho de geleiras sob pálpebras.

Por mais que eu amplie as margens não participo de seu entendimento, não estabeleço pontes por sobre a linguagem – lugar em que você e eu escorremos ao futuro –, e, também, não lhe conheço, em absoluto. Apenas intuo esse olhar sem data, sem espelho, sem um triz de alguma coisa que lembre luz. Esse olhar de momento que me põe curioso, que desperta um aprendiz que não dispensa precipícios rumo ao olhar humano.

Penso que somente ou por tudo isso você podia conceder-me uma lasca de seu tempo, uma gota de sua generosidade ao alisar seu cenho em resposta, ao conferir-se a dignidade deste tom ilusório. Talvez assim, todas as metáforas que transitem entre átomo e espírito compareçam na próxima esquina, numa confirmação de que há luz em seu olhar e de que ela quantifica-se na dimensão de um poder relativo.

Roberto Bittencourt