quinta-feira, setembro 29, 2005

Uma Porta



Parto do princípio de que uma porta é uma porta.
Mas, se isso fosse uma verdade absoluta, estaríamos conversados. E um abraço pro gaiteiro. Que é o que é, lá isso é, agora, que é só isso, isso não.

Passo por ela, fecho-a, sento-me defronte, e, comendo um prato de mamão picado, espero até que ela me diga algo. Não diz. Isso é lógico, porta não diz, é dita. Dito isso, passo para mim, reflito: apesar de ser o que é, também é o que imagino que ela possa ser. Era o que faltava para as portas se abrirem, digo, para que eu diga o que ela não diz.

Penso em forma, dobradiça, ferrolho, em porta de treliça. Penso em porta de camburão, de educandário, de jazigo, de palácio, de meretrício, de santuário, em porta de vestíbulo, de ônibus, de armário, de alçapão, em porta-camarão, de dicionário, opa...! Aí me detenho.

Porta disso, porta daquilo, nesse ou naquele contexto, isso não importa. Levanto, abro e fecho a porta. Sento-me novamente e parto para o texto. Escrevo que uma porta é uma porta, mas penso que ela pode ser um viaduto, uma tampa, um chinelo nas rosetas rasteiras entre o desejo e o abraço da mãe que aponta por detrás da nogueira. Se não fosse pela presença dela ali configurada em caixilhos, folha, maçaneta, fechadura, o pensamento voltaria às palavras de afeto, aos acenos do pai que asseguram a firmeza do próximo passo.

Mas ali está ela nua e crua esperando que eu diga duma palidez sólida, duma função relativa que beira ao engodo entre o público e o privado. Pergunto-me se o movimento da folha que estanca o vento justificaria um gesto tão particular que não pudesse se dar a um olhar que desperte algo. Não respondo. Se o exercício que me proponho é o de dizer com simplicidade que uma porta pode ser mais que uma porta, decididamente, não vou enveredar para a função de um movimento ou para os domínios de um gesto.

Quero e preciso dizer do que eu estou vendo, do que se apresenta como o objeto que escolhi para testemunhar a sua presença diante de você, leitor. Ela continua ali, agora vazada, mas pronta para o estalo do fecho e para o desfecho que dela faço. Absoluta em entradas e saídas, justificando as paredes que angulam o espaço em graus de retângulos particularmente configurados para este momento.

É uma porta que comporta qualquer argumento, já que o que eu digo é um testemunho daquilo que vejo, e, pelo visto, são coisas que se dão sem que a percepção do leitor se dê conta de que pode não ser nada disso. Agora, que é madrugada e que ela está ali feito uma porta, disso o leitor não precisa duvidar. Mas se quiser que, ao invés de porta, ela seja aquela decisão de ser honesto, de colaborar, de respeitar a opinião do outro, de franquear um sorriso, de bajular, de puxar o tapete, de fornecer formicida para festa, também pode, afinal, o que eu estou dizendo é que ali existe uma porta e que a vista do leitor não é a minha.

E, no texto, a maçaneta pode ser aquele soco dado na mesa ou aquela gentileza em privar-se da sobremesa para atinar um lamento. Conta o que o leitor tenha à mão ao se fazer presente pela sinapse quando lê que a porta de que falo pode até ser transparente ou, quem sabe, de uma matéria fosca, martelada, a impedir uma visão qualquer que não seja a desta ali, chocha, agora escondendo o espaço da sala.

Ainda que eu diga que a porta que estou vendo é a de um espaço específico, que, a rigor, não interessa ao leitor, dou algumas pistas de que o texto não é verdadeiro. Verdade seja dita, porta é porta, texto é texto e o mamão está uma delícia. Mas não venha me dizer que depois disso, tanto eu, quanto você, não teremos um pretexto para abrir ou fechar qualquer porta que apareça.


Roberto Bittencourt

sexta-feira, setembro 16, 2005

AO ATO


Quando nada mais era tão presente quanto a pura angústia de estar entre partículas atômicas, respondi que sim. Sim, eu era a densidade possível e tinha por local a única estação de onde partem os sonhos. Todas as manhãs haviam se disposto à envergar meu dorso, para que não mais me deleitasse em vigências em pé por escoras de velhas ripas restadas dos paióis bélicos de uma civilização suicida. Sim, eu era minúcia e dizia isso por apreço aos sonhos que dali partiriam, para povoar as periferias e reciclar os lixos. Para cada pensamento havia um oceano revolto a vazar do olhar. Ninguém se atreveria, fosse isso possível, a represar o fluxo do solene equilíbrio entre razoável e necessário que conotava meu sim.

Não é simples para o sim ser assim tão senhor de si. Vá a um sanatório, a uma sessão plenária, coma um prato de sopa na pensão da Dona Loca, compre um fusca e vá morar pra lá do Boa Vista. Algum parâmetro permitirá a piora, a angústia, o pânico, algo que descompense, que não seja promessa e se aposse do ato.

Eu disse sim porque tudo era favorável, porque tudo estava face a face e assim faz-se a poesia. Ninguém passa pela vida. É por isso que os sonhos são tecidos com fios de sim e de não, meras funções que nos compete para que a poesia, vida em sua humana vista, se alastre para além de princípio e fim, onde viver é degustar a suculência de um caqui maduro. O sim se diz como se diz o não: sim, eu vou ao banquete; não ficarei guardando os carros enquanto vocês se deliciam. Basta um ponto para o universo. E não há razão que fundamente o oposto sem inventar o pecado, sem ao menos aplaudir a violência.

Responder que não, para quem morreria naquela situação de agonia, seria dizer sim pela contingência, seria abrandar o coração vencendo-se por si e por quem mais se considere. Respondi que não porque o meu sim inventava novos sonhos, assumia uma página em branco. Nada de lamentos, nada de certezas, apenas um sim, um não e outras tantas...

Elfon Aparecido Gonzalez

quarta-feira, setembro 14, 2005

Viela curitibana


Não sou grato
não tenho sido poupado

Se você aparecesse
e me desse um trocado

ainda assim

o céu permaneceria nublado.


Roberto Bittencourt

Segredo da noite


Vejo as estrelas
e lembro dos homens
grupos
brilhando na escuridão

distantes
de nós mesmos
insignificantes
pra quem na noite
busca a estampa do céu

é tão bom ver estrelas
que quem vive quer vê-las
- o rumo do olhar é sempre a luz -

na noite as constelações são imagens
pontos clarões
próximas ou a bilhões
sempre grupos
atrações brilham
os homens com seus corações.


Roberto Bittencourt

quinta-feira, setembro 01, 2005

Espaços II


Ao recusar-se a passar pelo vestíbulo, Rodolfo surpreendeu a seus pares de afeto e a si próprio ao compreender que as paredes eram feitas de imagens diluídas em amplos espaços de natureza líquida organizados pelo espírito no tempo e percebeu que das janelas, apenas noções de abertura, fluxos solidários estimavam sua posição de momento. Não havia fora nem dentro, nem degraus ou pavimentos, tudo se transformava em disposições difusas num meio incontido que abrigava e era abrigado, como se cada um dos amplos espaços pulsasse em concomitância com sua organização precisa. Frente à sinalização luminosa que indicava o vestíbulo foi prudente, não deu de ombros nem esboçou bocejo, tomou um copo de suco de uva e coordenou suas funções organizadas com as imagens que via. A cicatriz de um tombo também participa de canções. A solidão de uma manhã remota sob os caquizeiros permanece independente de ciclones, de nevascas, de chimarrão na praça, de golpes disciplinares, de ironias ferinas, de embriaguez, de constrangimentos viscerais. Quisera ser José Régio, Drumond, Pessoa, Marcos Prado, um espírito fora deste tempo, um pinheiro ao relento desafiando a fúria da tempestade para transpor todos os vestíbulos até a última metáfora.

Mas as paredes...!
Ah, as paredes que insistem em servir de encosto, de suporte para quadros, de condição para que o espírito se integre aos edifícios de pedra, aos tabuleiros de um jogo cujas regras dizem respeito ao outro apenas como um outro entabulado nunca legítimo em suas tosses, em seus rompantes, no dinamismo de suas coerências. É assim, sem casca, que prossigo manifestando meus olhares de preguiça, minhas calcificações doloridas, minhas vontades encalacradas na organização única de sonhos frente a pobres metáforas que venham a insinuar controle de fluxos eternos.

Não entro pelo vestíbulo.
Porque se eu entrasse estaria admitindo que a vida é feita de retornos, de paradas absolutas e de retomadas a partir de pontos indicados por misteriosas mãos de um destino traçado sem o consentimento de uma visão que os carrega em si. O ponto de retomada pelo júbilo ecoa hoje no ciclo vicioso dos sistemas prisionais como símbolo morto de uma indulgência traída em nome da vida que se transformou em violência.

É difícil se narrar um fato em que o protagonista não fique na sua, não se limite a pertencer ao que se está narrando, fique à espreita para ao mínimo vacilo tomar as rédeas e dizer coisas que acabem confundindo o leitor. A persistir assim o narrador se constrange, feito a mãe que conta uma história sobre o filho e é interrompida pelo mesmo com o argumento de que não é bem assim, de que foi no dedão e não no dedinho que inflamou o espinho.

Tudo bem, assim o narrador prossegue, mas à mínima interferência o leitor será prejudicado, não exatamente pelo fato de ter havido outra interferência, mas porque a paciência do narrador terá chagado ao limite, e... Ocorre que ele disse com todas as letras: a história é sua, me desculpe, já estou em Morretes.

Não entrou pelo vestíbulo porque além de não percebê-lo tinha um trauma, fora jubilado na Faculdade de Ciências Sociais da PUC-RS e tivera de fazer novo vestibular. Até aí tudo bem, as instituições também são espaços organizados e, de alguma forma, coerentes com suas origens, mas, frente ao momentaneamente imponderável que significava passar por um vestíbulo sem o pleno sentido de uma passagem para algum recinto, era um contra-senso, uma afronta ao próprio espírito imperfeito de Rodolfo. Se fosse preciso até abdicava daquela velha calça azul que vestia todo o final de semana, daquele hábito danado de tabagista de berço, daquela chave de fenda que herdara de seu avô, mas que ninguém pedisse para abdicar dos espaços conquistados às montanhas que seus pais e tantos irmãos o ajudaram a remover. O dentro e o fora aram noções das quais lhe couberam tantas outras que, mesmo localizadas, não se afiguravam como caixotes de cimento armado ou como modelos de pensamento cultuados a partir da escola. Rejuvenescera depois que o seu passado passara a se situar na própria pele e o seu futuro a fluir nas imagens além de pórticos, vestíbulos, maçanetas, palavras de ordem, senhas numéricas ou virtuais mistérios de um tempo acorrentado. Ser Rodolfo era visitar Delleuze, Faulcout, Adolfo, Pirulito, Dona Zica, Seu Alvino, perguntar a cada pétala como se olham lírios do campo, como se sustentam cores num olhar; era permanecer frente ao vestíbulo sem falsa humildade e dizer da poética que permeia um mundo extenuante e cheio de alegorias. Não podia passar por ali porque ali não havia ou, se havia, não condizia com o sentido que lhe pudesse conceder o Rodolfo das noites estruturadas além de seus pensamentos pelo espírito de um mundo mais justo, do afeto conquistados em castelos medievos, da liberdade compreendida às custas de tantas sopas derramadas, de tantos gestos infames e que ainda podia ser flagrada na irresponsabilidade de uma pedra na mão. Mas todos os pontos de possíveis retomadas, até então, lhe facultavam a autoridade de um olhar não educado para ver portas onde elas apenas importavam às formas que não formam, de Goeth. Os olhares não recebidos ou recebidos de viés, os lamentos destinados de procedências que Rodolfo tanto tinha em enlevo lhe faziam menos vulnerável quanto mais insistentes se tornavam. Às vésperas deste século recebera condolências, estivera em Lagoa Vermelha, em Miguel Pereira, na Ilha do Mel, comera milho verde na Serra do Rio do Rastro, cobra na Índia, tutu em Betim e tudo isso naquele momento não significava nada não fosse por um não, sacado prontamente como o gesto de flexionar ascendentemente a perna para subir o próximo degrau. Agora, verdade seja dita, nem tudo era assim tão evidente frente ao tal vestíbulo, mesmo para quem conhecera Rodolfo na véspera de seu primeiro aniversário e desde então acompanhara a sua acidentada trajetória até aqui. Nesses 54 anos de idas e vindas às instituições fechadas, aos campos abertos, à Cordilheira dos Andes, aos aniversários de parentes, aos universos poéticos convencera-se de que a sua individualidade não é uma Tocha Olímpica que tenha saído de uma pira oficial para percorrer o mundo de mão em mão até um retorno triunfal ao seu lugar de origem. Se fosse chama, coisa de que não tinha certeza, era de natureza indivisível, algo como um pôr-do-sol por detrás de pereiras num final de abril - por qualquer fresta que se perceba, divisas de uma visão espectral.
Mas você esqueceu de dizer que...

Elfon Aparecido González