quarta-feira, novembro 29, 2006

LUZES DA MINHA CASA, 1981

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quarta-feira, novembro 22, 2006

LUZES DA MINHA CASA, 1981

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quinta-feira, novembro 16, 2006

quarta-feira, novembro 15, 2006


O simples mente
o que complica
quase sempre
simplesmente
se explica

D. Souza

sexta-feira, novembro 10, 2006

ENSAIO


Esquina da Cruz Machado com Ébano Pereira, Curitiba, Lavir pode exibir sua estatura de ex-bancário vitorioso na Justiça do Trabalho da janela que abre o acanhamento geral da quitinete 812 à luz difusa pelas coisas centrais da cidade noturna. Edifício São Paulo dos anos setenta, abrigo de sonhos irrigados na Universidade Federal, no Teatro Guairá, no Sibemol, nas lojas centrais, nos escritórios de contabilidade mantêm-se o ar de edifício generoso, subversivo, sujo, nojento, acolhedor e caseiro.

Ali na cabeceira da ponte, algo deu errado. Até hoje não se sabe se Anelise, sempre empinada e maliciosa nos lances matinais das escadas, precisou sair escondida na manhã anterior ao fatídico dia pra se encontrar com Nari, na Saldanha. Pai, mãe e irmão um dia depois do enterro voltam pra Lacerdópolis, de onde nunca deviam ter saído, já que ninguém quis estudar e agora esse vazio, esse quarto sem a graça que fazia do sexto o andar mais concorrido por olhares e pensamentos estéticos e sensuais.

Flautista-doce de finais de tarde e de madrugadas, Edinos pilota seu fogão de duas bocas sempre que Clóvis, o porteiro, de propósito se distrai na passagem das amiguinhas e ecoam faceirices no corredor, misturadas a odores de ovo frito e sardinha. Dá pra contar, vezes que chove e não molha cuecas, calcinhas, toalhas de banho, de mesa, sapatos, sutiãs, meias, lençóis, cobertores pendurados dia e noite nos parapeitos e em varais que voam das janelas.

Lava-se e passa-se roupa pra fora, vende-se marmita, dá-se aula particular de inglês, datilografia, flauta doce, violão, acompanha-se solitários, faz-se escapulário, alugam-se quartos para moças de boa família, para solteiros com referência. Nas paredes e vidraças pôsteres do Papa da vez, de Rita Cadilac, Odair José, Chaplin, Guevara, Caetano, dos Beatles; réplicas e arremedos de Van Ghog, Picasso, de Nilo Previdi.

Carta pra Dona Marcia, ligações pra delegacias, hospitais, visitas ao IML, noites em claro indagando, lembrando, relembrando, tomando chimarrão azedo com pé-de-moleque. Impossível compreender sumiço assim tão sem anúncio e incontestável. Se com aquele frio não usa blusa, sai ainda escuro sem falar com Clóvis, binóculo sobre a cama perfeitamente arrumada, não chega ao trabalho e a geladeira aberta não é possível tenha se enfurnado na casa daquela... Melhor dar um tempo, ir ao cinema, tomar quentão ou chocolate com graspa no Espanhol, quem sabe se amanhã ou mesmo hoje de madrugada como sempre ele não aparece como se a vida se desse por acaso.

Só por intuição, sua danada. Claro que não, quer dizer, até que esteve na casa dela, mas ninguém atendeu. Já que querem saber, estava no apartamento do Nari. Não sou casado com ninguém, trabalho por conta própria, sou maior de idade, vacinado, e além do mais cada um cuide da sua vida. Ingrato. É demais. Uma, a Anair, salvo engano, foi morar com uma amiga em São José dos Pinhais, as outras duas, que quase não se via, numa pensão próxima ao Passeio Público e o safado sentou praça na polícia.

O sétimo vira um sossego pro velho casal do 709 dormir com as galinhas e acordar com as onze-horas cultivadas na área de serviço. Sirenes, gritos, estampidos na Cruz Machado, frente às boates e espetinhos na noite posterior ao desencarne coletivo que levou Lavir a pensar na morte, tiraram o sono da maioria dos condôminos, mas não o de Lavir. Não sabe se cansaço físico da viagem ou mental de pensar que os espíritos não podem apodrecer; aguardar num espaço qualquer um juízo final ou morrer simplesmente o faz dormir tão profundamente. O medo de acordar sem corpo inventa um sonho ponte entre todos os códigos aprendidos e as galáxias do espaço sideral, que, a um só tempo, iniciava, permanecia e findava num cheirinho manso de pitanga que podia ser visto bailando solitário bem na entrada do edifício. Numa das galáxias churrasqueira de cristal líquido assa em chamas de escala CMYK lactobacilos meio visguentos de um sabor aveludado e citrogaláctico que causa uma sensação de espectro em transe. Acordar pra quem pode. Ainda que se queira, milhares de drivers acionam simultaneamente os sistemas nervoso e linfático por meio de conexões acopladas ao calor da pele pra que o modo vígil se desintegre sob remeças de gozo, veladas em poeira cósmica. O chaveiro chamado às pressas faz as mãos de Clóvis, longe da delicadeza, compactar no corpo franzino, a partir dos ombros, todo aquele universo onírico, simbólico.

Parado no nono, porta escancarada e nada do safado que depois da baixa voltara para o edifício com mulher e filho recém nascido. Solte esse elevador. A herança de rompantes camuflados em ares de poder legítimo age como se a questão de erro e acerto se resolva no grito. Faz e acontece até o despejo, desce pelas escadas. Na subida pifa o relé, gritos estridentes descem o fosso e vazam pelas frestas das portas até atingir os tímpanos de Nari que aguarda no térreo para subir ao oitavo e ao violão lembrar Tim Maia.

A mão da treva roça a pele moça do grito e causa arrepio, correria, pânico de baixo à cima. Incêndio, parto, estupro, choque elétrico passam de boca em boca e chegam às calçadas, a pontos de táxi, aos bombeiros, à polícia, a um boteco no Boqueirão, à imprensa. Entre o segundo e o terceiro. Com o relé novo saiu abatida, mas aliviada e em casa de água com açúcar. No 306 a vida por um relé. Lavir no elevador aperta aleatoriamente todos os números, pára no segundo aperta o sétimo, pára no sétimo aperta o quarto, pára no quarto aperta o nono até parar em todos e pensar que as cortinas estavam abertas.

Roberto Bittencourt

terça-feira, novembro 07, 2006

ENSAIO


Abílio habilitara-se em molduragem. Fala macia e olhar comprido. Mas um comprimento sem consistência, de elástico podre, recebia qualquer um em sua sala como se fosse sempre um outro. Sorriso forjado em igreja adventista, exato. O jeito de torres gêmeas de antes, teria de um programa de adoções. Vivera na Ilha de Manhattan e adorava seus pais de lá.

Comera siri em Singapura, pilotara helicóptero, comprara uma Ferrari e comera castanha do Pará com vinho do Porto. Qualidade de vida é questão de honra. Estivera no Japão, no Haiti, no Paraguai e dá-lhe calicida depois de Santiago de Compostela. Missa, talvez uma ou outra, preferia o incenso dos mosteiros, a zenzisse das fachadas dos condomínios de luxo, o time do Coxa.

Fumara até os quarenta e tantos. Cachimbara, tivera tosse. Mascara palito de fósforos, gengibre, pau-amargo, caneta, unhas dos pés. Nem pigarreia e tem nojo e náuseas ao cinzeiro no nariz ou no olho. Nos anos cinqüenta tivera o primeiro namorico, ainda piá, no Colégio Medianeira. Menina sardenta virara rainha do Clube Concórdia, adorava mexerica com açúcar mascavo e uma pitada da canela em pó.

Jeitoso, meio aristocrático, pele de bebê de uns trinta e poucos, pêlos, talvez na bunda, olhar de um comprido podre. Lidava o tempo todo com uma agenda ensebada de luxo, capa grossa cheia de cartões, cores, lapiseiras, compromissos. Olhar olhava pouco para o outro que era qualquer um menos o outro que ali estava, um outro que, no fundo, era ele mesmo dissimulado em atenção de um olhar de comprimento podre. Roupa condizente com a pele, empapado de gel o cabelo, sentava feito professor de geografia ensinando receitas de pé-de-moleque, de torta de caqui, de mingau de maisena.

Conhecera alguns espíritas, participara de congressos na Europa, Roma lhe impressionara, às lágrimas. Mulheres. Tivera um time de vôlei. Filhos com quase todas. Bom ganho podia pagar almoço em Santa Felicidade, dar camisa de marca, tênis da moda. Futebol, nunca jogara. Intelectual de muro alto e olhar de comprimento podre. E que ninguém pensasse que ele não tenha tido fusca, Fiat 147, dormido ao relento, comido pão amassado pelo chifrudo.

O diabo é que hoje o passado não conta; o jeito de andar, de pegar o copo, de coçar a orelha, de dizer bom-dia hoje é qualquer coisa, menos resultados das consolidações internas, coerências de afetos e desafetos, de andejos entre o xucro e o sinuelo.

Especializou-se em molduras plásticas, não sem antes passar pela madeira, pelo metal, marfim, casco de tartaruga, concreto. Sentou-se no corrimão e desceu na banguela. Plástico é plástico e moldura é moldura, mas moldura plástica pode ter um gesto, um jeito, um modo, uma covardia, uma palavra. Que percorressem a sua história se quisessem e encontrassem aquele domingo de puro ócio à beira do Titicaca, aquela madrugada gélida sobre a escadaria do correio velho. Isso tudo não levaria ninguém ao seu espaço. Entre sem bater. Um comprimento podre de olhar com dono e o resto que se dane.

Moldura plástica era a sua condição. Receita de tapinhas, de torniquetes, de coragem, candura, verdade. Que vissem o seu sucesso e depois se arrependessem por não terem feito isso ou aquilo, que tudo não passa disso.

Roberto Bittencourt