Começo a escrever do nada e logo percebo que nada é mais significativo que não se ter nada para escrever. Ainda que isso soe paradoxal, salva-me da obrigação de viver dizendo que tudo se dá desta ou daquela forma e que à vida nada se justifica sem uma prerrogativa criteriosa em relação ao meu pensamento. Nada disso. Nada de pensar que a natureza de um pensamento seja somente o largo campo da lógica ou que o pântano da violência tenha sua origem só na miséria de becos e favelas.
Escrevo por escrever, assim como vivo por viver, olho por olhar e percebo por perceber. Se eu tenho algo a dizer, digo sem sapatos, com um relógio Rolex ou com a aparência de espectro de uma fotografia da Etiópia e as palavras jorram para os sentidos que as dêem quem queira ou possa.
Aqui não há preocupação; ocupo-me apenas em escrever e, entre uma palavra e outra, tomar um gole de água, olhar para lugar algum que não signifique necessariamente uma visão, mas, que me desperte para este momento sem sentido e cheio até que outra manhã aponte por entre as lacunas e colunas deste estático movimento.
Escrevo como quem come um caqui maduro e sente desvencilhar-se dos gomos a suave textura de suas sementes.
Vou à janela e as motocicletas gemem sob os pensamentos que costuram o trânsito para levar o tempo antes que ele se estabeleça e cause esperança. Tudo continua e completa-se em tempestade fulminante que enseja o momento de dizer uma graça, de balançar a cabeça e confirmar a disposição de uma presença, as condições de uma vida intensa.
Dispenso o discurso remediador, receitante, disponibilizador de veredictos açodados e entusiásticos ao leitor atônito. Falo em linhas curvas, em linhas rizomáticas que partem de lugares estimados e dispersos pelas adjacências de um ser que neste exato instante escreve amor.
Digo em código de olhares de quem olha e sabe que a mão de uma criança acaricia o espírito e obedece-o na busca por cada gesto.
Percebo agora que esta escritura não tem começo e que o começo de que falei é apenas a oportunidade que tenho para escrever o que já estava escrito em outro código que não a escrita. Não há um projeto para dizer isto ou aquilo. Escrevo o que alcanço sem precisar de ginástica; sem movimento brusco para surpreender a palavra antes que ela se faça presente por legítima vontade de se doar ao texto. Eu simplesmente as aceito como aceito o sabor de um pêssego, como aceito esta oportunidade de dizer que isto também não tem fim.
Roberto Bittencourt
Texto originalmente publicado no jornal Patyfarias de Paty do Alferes - RJ
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