quinta-feira, outubro 26, 2006

CAMPOS




Começo a escrever do nada e logo percebo que nada é mais significativo que não se ter nada para escrever. Ainda que isso soe paradoxal, salva-me da obrigação de viver dizendo que tudo se dá desta ou daquela forma e que à vida nada se justifica sem uma prerrogativa criteriosa em relação ao meu pensamento. Nada disso. Nada de pensar que a natureza de um pensamento seja somente o largo campo da lógica ou que o pântano da violência tenha sua origem só na miséria de becos e favelas.

Escrevo por escrever, assim como vivo por viver, olho por olhar e percebo por perceber. Se eu tenho algo a dizer, digo sem sapatos, com um relógio Rolex ou com a aparência de espectro de uma fotografia da Etiópia e as palavras jorram para os sentidos que as dêem quem queira ou possa.

Aqui não há preocupação; ocupo-me apenas em escrever e, entre uma palavra e outra, tomar um gole de água, olhar para lugar algum que não signifique necessariamente uma visão, mas, que me desperte para este momento sem sentido e cheio até que outra manhã aponte por entre as lacunas e colunas deste estático movimento.

Escrevo como quem come um caqui maduro e sente desvencilhar-se dos gomos a suave textura de suas sementes.

Vou à janela e as motocicletas gemem sob os pensamentos que costuram o trânsito para levar o tempo antes que ele se estabeleça e cause esperança. Tudo continua e completa-se em tempestade fulminante que enseja o momento de dizer uma graça, de balançar a cabeça e confirmar a disposição de uma presença, as condições de uma vida intensa.

Dispenso o discurso remediador, receitante, disponibilizador de veredictos açodados e entusiásticos ao leitor atônito. Falo em linhas curvas, em linhas rizomáticas que partem de lugares estimados e dispersos pelas adjacências de um ser que neste exato instante escreve amor.

Digo em código de olhares de quem olha e sabe que a mão de uma criança acaricia o espírito e obedece-o na busca por cada gesto.
Percebo agora que esta escritura não tem começo e que o começo de que falei é apenas a oportunidade que tenho para escrever o que já estava escrito em outro código que não a escrita. Não há um projeto para dizer isto ou aquilo. Escrevo o que alcanço sem precisar de ginástica; sem movimento brusco para surpreender a palavra antes que ela se faça presente por legítima vontade de se doar ao texto. Eu simplesmente as aceito como aceito o sabor de um pêssego, como aceito esta oportunidade de dizer que isto também não tem fim.

Roberto Bittencourt

Texto originalmente publicado no jornal Patyfarias de Paty do Alferes - RJ

sexta-feira, outubro 20, 2006


Hoje eu quero falar de um ser que por ser o que é não deve ser o que aparenta. Para começo de conversa, isso já deve ter-lhe soado um tanto estranho, um ser que é o que não deve aparentar. Mas, reflitamos pelas normas e crenças de nosso mundo conspícuo e esse serzinho surgirá sem qualquer máscara que nos passa induzir a uma aceitação passiva de sua empáfia.

Trata-se de um ente perigoso. De um delinqüente que se infiltra por entre os valores mais caros de nossa família, de nossa sociedade, de nossa condição humana que tanto pagou e paga pela segurança de que se tem direito. Em nome da ordem e do progresso é preciso deter essa criatura, esse mostrengo que acha que o caos é a única vertente para a fonte da vida. Não se pode permitir que as suas divagações, que a sua estúpida visão dinâmica das coisas venha, em nome da individualidade, perturbar a nossa coerência humana construída as custas de tanto sangue pelas crenças que nos animam.

Se me fosse permitido dar um conselho eu diria, leitor, afaste-se desse sujeito. Pelo que se conseguiu até aqui com tanta astúcia, com tanto zelo, prudência é a palavra-chave para se acessar qualquer traço de importância que, por ventura, brote desse tipo esquisito e se faça coisa concreta. Agora, de qualquer forma, não será um visionário, um tolerante qualquer que irá difundir os segredos de nosso sucesso, de nossa condição de poder sem consistência.

Sei que estou me estendendo e que a sua curiosidade aumenta quanto mais o tal ser é descrito sem uma identidade, sem um nome ou apelido qualquer que o torne significativo. Ocorre que a minha intenção é de que você que certamente conhece alguém com as características que vão aqui surgindo, não se iluda com aquele olhar bem intencionado, com aquele sorriso verdadeiro, com aquela absurda mania de respeito que só faz abalar qualquer segurança. Você sabe que entre o conciso e o prolixo há uma enorme variedade de modos expressivos que não se deve levar em conta, a menos que se queira promover diálogo. Coisa que, cá pra nós, é absolutamente dispensável, já que se pode decidir por si que o outro não vale a pena.

Já se falou muito sobre esse tal de poeta. Já se disse que ele é um fingidor, um louco, um abusado, um sujeito que não se enquadra às nossas tradições, às nossas normas de conduta absolutamente alicerçadas nas vitórias do bem sobre o mal. Prisão, chibatadas, pau-de-arara, afogamentos, já se tentou de tudo e para o nosso desassossego, quando menos se espera, surge uma dessas criaturas a espreitar por entre os olhares e os gestos para depois por palavras em nossa boca e vela em nossa mão. Se você imagina que a morte pode detê-lo, que a laje de um túmulo o prenderá às larvas que devorarão sua língua, sua sensibilidade nojenta, saiba que Fernando Pessoa, assim como José Régio, Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Dromond, Rimbaund, Augusto dos Anjos, Marcos Prado, Leminski e toda uma legião desses perturbadores da ordem permanecem por aí a corromper as nossas leis, a nossa segurança e o futuro das nossas projeções acadêmicas.

Por mim, ele, que vá viver de favores como viveu Mario Quintana e como vivem tantos outros. E que se alimente de metáforas, de brisas, de qualquer coisa que ele invente e que não venha interferir em nossa disposição de fazer do mundo um grande negócio para os nossos filhos. Que vá aprender a ser competitivo ao invés de ficar marcando passo com essa de colaboração, de respeito mútuo. E que não me venha com aquela lengalenga de linguagem do amor. Amor é sexo na cama ou em qualquer outro lugar, o resto é papo furado, é conversa de quem não tem o que fazer e fica por aí buscando chifre em cabeça de cachorro.

Definitivamente, eu detesto esse tipo. Nunca se sabe o que ele quer, por onde ou para onde vai, qual a lógica de sua conversa, qual a graça de suas pilhérias ou o motivo de suas lágrimas. E, se não bastasse, nunca se sabe se está indo a uma festa, a um velório ou ao trabalho. É, de fato, um desajustado. Nunca dê corda a esse tipo de sujeito se não quiser que os seus negócios escusos, que os seus investimentos em pessoalidade performática sejam bisbilhotados e até contestados.

Fiquei sabendo de um caso ocorrido numa dessas empresas pós-modernas, cujo, a um desses sujeitos, fora dada a corda suficiente para que ele fizesse livres observações. Não preciso nem dizer que virou um verdadeiro caos, é gente respeitando gente, é diálogo daqui, é diálogo dali. E, pior, acabaram-se as fofocas, os rompantes, a tal empresa virou uma insuportável profusão de felicidade e de resultados positivos em âmbito geral. Ora, que não me venham com mais essa de humanização das relações profissionais de verdade. Esses humanistas também estão na minha mira. São eles, por certo, os responsáveis por promoverem, menos mal que raramente, esse tal de poeta a funções relevantes dentro da nossa querida sociedade.

Por fim, o que mais me irrita nesse tipo calhorda, desgraçado, é a mania estúpida que ele tem de tratar das nossas mais caras conquistas com a ironia ferina de um coração azulejado.

Roberto Bittencourt

Este testo foi originalmente publicado no Jornal Patyfarias de Paty do Alferes - RJ

quarta-feira, outubro 18, 2006


A opção preferencial pelos pobres, alardeada aos quatro ventos como mote político de sustentação do poder carrega consigo ao menos um equívoco de ordem geral. Trata-se de visão restrita da dimensão histórica humana, impulsionada por certa materialização do pensamento em busca de poder. As perspectivas dessa visão são traçadas de modo a isolar no espaço/tempo uma desigualdade material que, em detrimento do pensamento quântico, permanece em luta dialética na dinâmica de um pensamento de poder cada vez mais corrompido e violento.

Localiza-se esse equívoco no traçado perspectivo que caracteriza liberdade, igualdade e fraternidade como instrumentos a serviço do poder político. A importância dessa trilogia a partir do marco histórico que consagrou a Revolução Francesa, assim, assume contornos maquiavélicos no discurso político ocidental por conta de um fim que, sempre messiânico, justifica qualquer meio. Nesse sentido, a democracia republicana do Norte, por exemplo, vai além do discurso: tortura e mata sempre sob escudo de um desses três instrumentos.

Isso quer dizer que a opção preferencial por pobre ou por rico tanto faz, já que se trata de retórica. A questão de preferência pelos pobres se resume à ampla margem numérica que estes representam em relação aos ricos. Os discursos políticos, portanto, diferem apenas na forma de dizer aos pobres que eles são a razão do poder que outorgam. A mensagem de opção preferencial pelos ricos seria impossível diante dos fatos, contudo, uma vez sem igualdade é imprescindível maioria de pobres ou de ricos. Daí que, já que a maioria é pobre, que assim permaneça e sempre serão preferidos.

A questão, decididamente, não é de opção por esta ou aquela classe, por este ou aquele segmento senão pelo conjunto de individualidades humanas que dialogam no plano político/social na construção do bem comum. Esse é o sentido do voto que outorga poder de representação democrática a outro indivíduo que se disponha perceber além da dialética e do discurso pela ética, estética de uma formação política capaz de produzir a paz. Liberto, igual e fraterno pobre ou rico não será por preferência de representação, será, no mínimo, por gosto e por desgosto. Isso posto...

Roberto Bittencourt

quarta-feira, outubro 11, 2006

DA LUZ À PALAVRA

Quando você menos espera uma abelha aparece do nada e, pra começo de conversa, invoca que o seu copo de água sobre a mesa é qualquer coisa de um aroma insuportavelmente atraente. Flana por cá e por lá, faz que pousa e arremete, ora à janela, ora ao seu ouvido que ouve a direção tomada pelo zumbido veloz das asas. Você pensa se concentrar no texto e olha fixamente para a última palavra quando a danada, num rasante, desliza por sobre o teclado.

Toca o interfone e você esquece a dita cuja. Recebe seu amigo que continua o mesmo bonachão e engraçado dos dias trabalhados juntos na sala de redação e arte da companhia e o texto fica pra depois. Conta e ouve disso e daquilo; toma um café e tem sempre alguém de aniversário, alguém que sumiu – não deu mais notícias, outra que apareceu, o blog, a idade de um filho, a lamentável conduta de um vizinho que insiste em ignorar seu olhar amistoso.

Novamente sozinha e você se apruma, dedicada ao trabalho, precisa consigo no trato de cristais em sínteses e sintaxes. Torna ao texto. Agora uma sabiá encanta a manhã de outubro e puxa sua atenção, referida em tantos cantos de tantos momentos, para o floreio de um arrepio sobre a pele. Aí você lembra da abelha e imediatamente intui a ausência dela no recinto; olha em seu entorno e constata quase tudo como antes. A não ser por este texto você não faz sentido neste momento de multidão e colméia.

Nada disso importa se no dia seguinte, ao abrir a porta da sala, você tem a visão mais de criança feliz que jamais teve desde que se lembre. Ângela passa na simplicidade de março que lhe cai tão bem nesta primavera e faz do momento o mais possível que possa lhe coexistir em poesia. Uma atmosfera de broto de gramínea lhe invade e provoca a sensação de um passe, de uma lágrima temperada a tempo de você receber livre e comemorar mais um momento da luz à palavra.

Sorvência Lanowa

sexta-feira, outubro 06, 2006


O Bregão, quase no limite da cidade alta, seria só mais um edifício na velha geografia de Salvador, não fosse pelo apelido chulo que o caracteriza segundo critérios aparentes da cultura popular baiana. Década de setenta. Além de mim Elmo, Paulista, Terezinha, Gutemberg, Jandira... Pelos dez andares, mais uns três mil anônimos. Ali se sobrevive. Tem elevadores, fiação elétrica, telefônica, tem água encanada, torneiras, lâmpadas e somente as escadas funcionam.

Do térreo ao oitavo o trânsito suarento em maratonas verticais sem premiações e sem vento. Estruturas de uma história que abriga sonhos e os remete contra as paredes calejando-os em baques e bordoadas. Mas, um edifício. Faz-se em cada lance de escada, em cada andar, em cada apartamento, em cada cômodo o que cada um se admita. Não se sabe quem mora, trabalha, visita, espreita, vende ou pede ilusões. Funciona como estação de pernoite ou estacionamento de horista, diarista ou mensalista que manobre escada acima e escada abaixo.

Dia após dia isso. Um edifício que funciona, de alguma forma, como tal, mas cuja função de cada espaço interno não condiz com os códigos de coerência socialmente aceitáveis. O colecionador de chaveiros ouve Benito Di Paula às 4 da matina, no 2º, e o colchão no chão do 8º suporta a ira do acordado cuspindo fogo. Jandira bem que pôde exibir seu corpo em pele quando acordou no meio da tarde, boca seca, olhos de neiteadentro, toda suada cheirando a vagão de subúrbio.

Jogam-se búzios, dá-se receita, faz-se contabilidade, vende-se artesanato, cosméticos, cannabis, pão caseiro, acarajé, abará, pamonha, faz-se fretes por água e terra, faz-se jardins, presta-se consultoria no ramo de negócios em geral, compra-se móveis usados, moedas antigas, lanternas, azulejos, ouro, diamante, aceitam-se encomendas de maniçoba, sarapatel, colchas de retalho, cortinas de sisal, blusas e toalhas de crochê. Tudo sob o estigma do Bregão.

No apartamento 810 a noite feita de histórias de Cruz das Almas, de Feira de Santana, de Campos Novos, de Camaçari, de João pessoa, de Curitiba, de Ilhéus, de São Paulo e, quando Boi namora, de Bom Jesus dos Passos. Estruturas bio-histórico-culturais cooperam em função da preservação de um estigma que espreita cada passo, cada gesto. A fama do Bregão percorre as igrejas, os terreiros, os botecos, as praias; desce pelo Elevador Lacerda, por Planos Inclinados e chaga além do Bom Fim; toma rumos opostos, senta nas praças, percorre becos, penetra paredes e poros.

A calcinha, de um amarelo-cuscuz, contrasta com a pele ainda marcada pelas dobras do lençol amarrotado, mas quase não faz sentido pelo tamanho e a luz vigorosa da tarde. Não fosse por Jandira o silêncio vespertino só cortado pela televisão ligada por ela ainda com olhos entreabertos. Mas, por ela, tudo pode esperar e não falta assunto até que a noite se vá pela metade. O dia seguinte sempre é mais da metade do seguinte.

É divertido morar no Bregão. Mas chaga um momento em que a fama se liquefaz e passa a percorrer veias, vasos, a irrigar tecidos e a opilar dutos de uma estrutura que não lhe pertence, de espaços que como Bregão o edifício desconhece. O momento de adeus tem cor de baunilha, cheira a formicida, a piche e costuma usar disfarce de betacaroteno, de poema de Quintana, de milho verde assado, de mãos delicadas sobre a pele.

Roberto Bittencourt

quinta-feira, outubro 05, 2006


Lançamento de CD e Show do Thadeu
Data: 10 de outubro de 2006 (terça-feira)
Local: Beto Batata (alto da XV)
Horário: a partir das 19,30 h

terça-feira, outubro 03, 2006

Vórtice

De todos aludem meus
passos algum espaço
trágico, fóbico, cênico
em si a visar a palavra

Meus passos dados da
palavra amanhã que
me dei consentimento
de abrir a via possível

Amanhã meus passos
reconhecidos na laje
fresca da lápide, teus
séculos amanhecidos

Roberto Bittencourt