terça-feira, novembro 07, 2006
ENSAIO
Abílio habilitara-se em molduragem. Fala macia e olhar comprido. Mas um comprimento sem consistência, de elástico podre, recebia qualquer um em sua sala como se fosse sempre um outro. Sorriso forjado em igreja adventista, exato. O jeito de torres gêmeas de antes, teria de um programa de adoções. Vivera na Ilha de Manhattan e adorava seus pais de lá.
Comera siri em Singapura, pilotara helicóptero, comprara uma Ferrari e comera castanha do Pará com vinho do Porto. Qualidade de vida é questão de honra. Estivera no Japão, no Haiti, no Paraguai e dá-lhe calicida depois de Santiago de Compostela. Missa, talvez uma ou outra, preferia o incenso dos mosteiros, a zenzisse das fachadas dos condomínios de luxo, o time do Coxa.
Fumara até os quarenta e tantos. Cachimbara, tivera tosse. Mascara palito de fósforos, gengibre, pau-amargo, caneta, unhas dos pés. Nem pigarreia e tem nojo e náuseas ao cinzeiro no nariz ou no olho. Nos anos cinqüenta tivera o primeiro namorico, ainda piá, no Colégio Medianeira. Menina sardenta virara rainha do Clube Concórdia, adorava mexerica com açúcar mascavo e uma pitada da canela em pó.
Jeitoso, meio aristocrático, pele de bebê de uns trinta e poucos, pêlos, talvez na bunda, olhar de um comprido podre. Lidava o tempo todo com uma agenda ensebada de luxo, capa grossa cheia de cartões, cores, lapiseiras, compromissos. Olhar olhava pouco para o outro que era qualquer um menos o outro que ali estava, um outro que, no fundo, era ele mesmo dissimulado em atenção de um olhar de comprimento podre. Roupa condizente com a pele, empapado de gel o cabelo, sentava feito professor de geografia ensinando receitas de pé-de-moleque, de torta de caqui, de mingau de maisena.
Conhecera alguns espíritas, participara de congressos na Europa, Roma lhe impressionara, às lágrimas. Mulheres. Tivera um time de vôlei. Filhos com quase todas. Bom ganho podia pagar almoço em Santa Felicidade, dar camisa de marca, tênis da moda. Futebol, nunca jogara. Intelectual de muro alto e olhar de comprimento podre. E que ninguém pensasse que ele não tenha tido fusca, Fiat 147, dormido ao relento, comido pão amassado pelo chifrudo.
O diabo é que hoje o passado não conta; o jeito de andar, de pegar o copo, de coçar a orelha, de dizer bom-dia hoje é qualquer coisa, menos resultados das consolidações internas, coerências de afetos e desafetos, de andejos entre o xucro e o sinuelo.
Especializou-se em molduras plásticas, não sem antes passar pela madeira, pelo metal, marfim, casco de tartaruga, concreto. Sentou-se no corrimão e desceu na banguela. Plástico é plástico e moldura é moldura, mas moldura plástica pode ter um gesto, um jeito, um modo, uma covardia, uma palavra. Que percorressem a sua história se quisessem e encontrassem aquele domingo de puro ócio à beira do Titicaca, aquela madrugada gélida sobre a escadaria do correio velho. Isso tudo não levaria ninguém ao seu espaço. Entre sem bater. Um comprimento podre de olhar com dono e o resto que se dane.
Moldura plástica era a sua condição. Receita de tapinhas, de torniquetes, de coragem, candura, verdade. Que vissem o seu sucesso e depois se arrependessem por não terem feito isso ou aquilo, que tudo não passa disso.
Roberto Bittencourt
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