terça-feira, agosto 23, 2005

Vestígio


A Yurek Shabelewski (em memória)

A terra cedia lentamente à força de um pinhão que brotava solitário ao rés do campo e inventava no espaço uma tímida imagem por entre o capim. Na precisão do meio, mais uma semente que rebentava ainda aos sons de serras e de machados que aderiram ao pigmento gris da memória. Um broto de misericórdia ao apelo desértico que transita rouco na laringe do vento sul. Um destino traçado sem testemunho que já ensaia a sombra de um futuro de toras e de tábuas e de palitos e de um palco para ser bendito.

É um pinheiro que se expande a seu tempo, e, que, ainda que você o visse desde as sutis rachaduras que causou na terra, não reconheceria aqui na dança deste texto a textura das grimpas ensolaradas esticando nas fibras de cada manhã. Dos dias que se sucedem, no possível domínio da palavra, se faz imagem da araucária que Yurek percebeu em seu olhar de revoada; ergue-se o tronco de uma imaginação que se alimenta da seiva e da luz ceifadas ao ar agonizante.

Antes a dimensão da sombra que percorreu léguas no ir e vir das tardes sem compromisso, para agora se enroscar na linguagem e converter uma história em invento; e, para nesse caos natural de bio-alinhos resistir e curvar-se aos ventos, conduzir ao chão as explosões de tempestades e estampar no entardecer a silhueta que você vê agora por sob as pálpebras. Antes a desenvoltura voltada à vida, ao alvoroço de um ser único sem a individualidade do inteiro, do oleiro espatifando um tijolo de tempo na coisa moldada em mito.

A neblina ensina um olhar diferente e, nesse momento, o pinheiro não é pinheiro, não é véu, não é fumaça. Nada o indica e, ainda assim, é dito aqui que ele nasceu lá e que viveu até alinhar-se ao topo imaginário de uma agulha plantada ao acento. Extremo incômodo. Não há perdão ao atrevimento de se postar entre o cômodo e o indispensável. O lucro líquido, até da palavra sólido, bebe-se na fonte natural da mata, sem o custo de uma condição ecológica que entrave o negócio.

Ainda assim, houve o tempo de ser pinheiro; araucária ereta na fina visão de uma invernada, de ser jovem movendo-se no frio rubro do inverno sem a tecnologia mínima de um chinelo. Tempo de viver a dimensão do oxigênio que a vida incorpora desde as suas moléculas para, um dia, rosnar nos dentes de uma serra e violar as leis que regem qualquer sobrevivência. É o romântico domínio sobre a natureza, neste exemplo construído sem qualquer instância que não a do condomínio imortal do amor.

Que surjam madalenas, arianos ou negros na fábrica de um destino que não dependa somente da aparente evolução do beijo, da orientadora estrutura de uma lágrima. Soem os sinos, eleja-se o homem para galgar o posto do espírito que amou além de qualquer bem e que ainda vive desde as sobras dos condomínios de luxo. Assevere-se o domínio de um único olhar e o vacilo de um sim estropiado por entre as farpas da solidão escancarada à luz de uma palavra que diga não.

Daí o ensino, respeito desencilhado a galopar por entre olhares sem firmamentos que possam individualizar a história de um único peito. Política sem ética, tática de um lúdico sem nó e sem a esperança de que uma única pinha debulhe-se por sob a impermeável palidez das calçadas. É a eterna primeira pedra esfacelada contra a superfície polida do túmulo que guarda a miséria da matéria corrompida, num ato de coragem que se desprende do arrogo em forma de penitência.

De altivo quedou-se ao estalido de lascas esbranquiçadas pela violência exposta ao sol de um dezembro sem nuvens. Em seu lugar cresce a transgenia arrogante de um sistema adulterado em função de um poder conquistado às custas da indigência, da marginalidade social instituída para sustentar o discurso que a esse poder se preste.

Isso não é tudo. Não é nada. Mas, a você, leitor, teço um vestígio da fauna que sobreviveu à nossa caça predatória.

Roberto Bittencourt

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