terça-feira, setembro 12, 2006

Pelo espelho

Diga o que quiser, pense o que puder e eu não abro mão de uma estimulante diferença. Sei que é redundante e que nem por isso você deve parecer-se comigo. O estímulo se dá de diferentes maneiras conforme a natureza do espelho que se perceba.

Fiz várias experiências a esse respeito e descobri que o espelho que me repete ali meio tonto depois daquela sobremesa de sagu, por mais útil que seja em outras ocasiões, não passa de um objeto que assume somente a minha presença. É de natureza física. Até aqui nada de soberba, de dissabores, nada de profundas dores. Até aqui o espelho é o espelho que se quebra, que vira caco se o vento venta e ninguém se apresenta para segurar a porta que fora lenta. Agora, basta lembrar-se de um desafeto, de alguém que jurou vingança para que a natureza do espelho se altere e vingue a semelhança indiferente à presença.

Se você pensa que não vai mudar o mundo o fato de eu dizer que a diferença me estimula, me comove, certamente somos diferentes. E isso me faz pensar que é razoável compreender que, do seu ponto de vista, todo equívoco se dá no diferir de seu pensamento, de sua razão, de sua conduta, de seu jeitinho de calcular as coisas. Mas, precisamente por isso é que eu não me espelho mais a não ser fisicamente e que tive tantas dores e até desamores.

Hoje uso a palavra como quem usa chinelos para evitar espinhos e assim cruzar os campos para colher flores, para regar o seu pensamento enquanto percebo-me sem qualquer espelho. E neste exato momento me dou por respirar de forma diferente, não apenas pelas vias biológicas senão pelas históricas, culturais e espirituais que me deitam a este texto para dizer coisas sem um sentido próprio entes desse arrepio que lhe invade.

É neste encontro que nos encontramos um e outro sem espelhos, sem a igualdade calhorda de uma condição submissa, sem a incoerência transparente de um artifício em não pelo sim. Eu não lhe agrado e você não me dá conselhos, apenas compartilhamos desta alegria que, a rigor, não nos pertence, ainda que a sensação de pertencimento seja autêntica. Porque a linguagem que nos sustenta alegres transitou por tantas bocas, por tantos olhos, por tantas mãos, por tantos campos, por tantos pomares repletos de caquis e de ameixas que, por certo, pertence ao gênero único que se destina ao amor.

Confio a você estas palavras, não por pensar que elas permaneçam assim como estão depois de visitarem a sua coerência, a sua querência de tanta lucidez e de tanto encanto, mas, porque acredito que por elas você possa compreender qualquer coisa para a qual esteja atento. E disso talvez brote a confiança, a fé, a Cordilheira dos Andes. Só assim a imagem de nossa diferença fugirá do espelho, entrará por aquela porta ali e permanecerá em seu sorriso até que você descubra cada átimo que me permeia.

Roberto Bittencourt

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