sexta-feira, março 16, 2007

ENSAIO

Uma questão de coerência

Encantado me debulho em pensamentos de mudar o mundo, de interromper o fluxo das palavras frouxas para que a linguagem se faça de laços estreitos e fraternos. Penso em cirandas, em amarelinhas riscadas no chão de cimento ao ar das tardes cinzentas, numa poesia insuspeita aos espíritos desarmados. E percebo que são de bondade os semblantes adormecidos sob cenhos de um pavor hostil.

O encantamento surge na cor púrpura horizonte de cada olhar estendido, de cada gesto em coerência única desde as raízes da vida. Na frouxidão das palavras armam-se os olhares e a criança desce à solidão, violenta a carne peleja pela mínima energia de um pedaço de pão. O desencanto chama-se farinha e espalha-se com os ventos por entre as bocas ulceradas das constelações de zumbis.

Mas há ordem flácida na economia da vida, como se esta ainda jazesse pedra enquanto o espírito vive entes, com e além de qualquer palavra. O reencanto do mundo se dá da percepção das nervuras à congruência de um novo verso, do reverso à sutileza de um tecido e da trama ao enredo de um amor em exercício. Matéria prima dos laços lançados por Jesus em perdão, fé e tantas outras faculdades do amor.

A idéia de reencantamento não passa pela palavra – permanece nela –, qual, no advento da linguagem humana, o afeto pelas crias e o compartilhamento de alimentos a permitir evolução do primata bípede ao humano (H. Maturana - 1997). O encanto que dessa infância parte para a mediação cultural entre espíritos em nome da liberdade, percebe-se hoje em cacos, em panelinhas ou partidos, em frangalhos de uma estrutura moral exercida na incontinência.

Talvez fosse preciso reinventar a linguagem para que o encanto, o desbunde, o espetáculo, o escândalo assumissem distintas funções na ação de reencantar o mundo. Não bastam as percepções do artista, os sonhos do poeta no regaço de um linguajar privilegiado que irrompe das vísceras para agir em respeito à natureza humana, enquanto cessam violentamente as coerências na linguagem deste espaço-tempo.

Roberto Bittencourt

Nenhum comentário: